UMA PRIMEIRA ABORDAGEM MONOGRÁFICA DO CASTELO DE SESIMBRA – PORTUGAL

UNA PRIMERA APROXIMACIÓN MONOGRÁFICA DEL CASTILLO DE SESIMBRA – PORTUGAL

Rui Filipe CRUZ GIL*

Resumo

O presente artigo objetiva mostrar a relevância de estudos monográficos e multidisciplinares, procurando abordar os fenómenos e eventos humanos cujos reflexos podem ser identificados na cultura material, ou seja, nos bens arqueológicos que resultam dos vestígios da existência humana. Estes testemunhos materiais, uma herança cultural dos nossos antepassados deve ser alvo de registo e reflexão para um melhor entendimento das identidades e memória coletivas. O Castelo de Sesimbra torna-se assim um veículo detentor de um significado cultural reflexo de uma identidade local e nacional, que deve assim ser alvo de estudo e puesta en valor.

Palavras-Chave

Arqueologia; Património; Monografia; Ordem de Santiago; Castelo de Sesimbra.

Resumen

El presente artículo pretende mostrar la pertinencia de los estudios monográficos y multidisciplinar, tratando de abordar los fenómenos y acontecimientos humanos cuyos reflejos pueden identificarse en la cultura material, es decir, en los bienes arqueológicos que resultan de los vestigios de la existencia humana. Estos testimonios materiales, legado cultural de nuestros antepasados, deben ser registrados y reflexionados para una mejor comprensión de las identidades y la memoria colectivas. El castillo de Sesimbra se convierte así en un vehículo de significación cultural, reflejo de una identidad local y nacional, que debe ser estudiado y puesta en valor.

Palabras-Clave

Arqueología; Patrimonio; Monografía; Orden de Santiago; Castillo de Sesimbra.

A ABORDAGEM MONOGRÁFICA

O presente artigo pretende apresentar em revista os pontos chave da dissertação de mestrado defendida na Universidade de Granada sobre o Castelo de Sesimbra – Portugal. O trabalho realizado aborda o monumento desde o momento da sua fundação no século XI/XII até ao presente, apresentando uma maior incidência entre os séculos XIV e XVI, momento da sua maior dinâmica.

O Castelo de Sesimbra localiza-se na freguesia do Castelo, concelho de Sesimbra, no extremo ocidente da Península de Setúbal em Portugal. O monumento nacional (por Decreto de lei de 16-06-1910, Diário de Governo, n.º 136, de 23-06-1910) situa-se na mais larga elevação sobranceira à Vila Marítima de Santiago, apresentando as seguintes coordenadas geográficas: 38°27’04.8”N 9°06’28.2”W.

O Castelo de Sesimbra é um conjunto histórico – um grupo de construções e espaços que constituem um povoamento humano cuja coesão é reconhecida pelos mais variados pontos de vista sociais, tanto arquitetónico como arqueológico, pré-histórico, histórico, estético e cultural. É por isso um conjunto monumental homogéneo que deve ser defendido e conservado (UNESCO 1976:1-Definições). O nosso objeto de estudo torna-se assim um testemunho civilizacional detentor de um significado cultural reflexo de uma identidade local e nacional, sendo nele reconhecidos aspetos que invocam a História de Sesimbra e de Portugal.

De acordo com Artigo 1º da Carta de Veneza sobre a conservação e restauro de monumentos e sítios, é necessário que exista um significado cultural por detrás do monumento histórico, sendo este sítio um testemunho de “uma civilização em particular, de uma evolução significativa” (ICOMOS 1964:Artigo 1º). Se adicionarmos a Convenção de Granada podem-se considerar monumentos “todas as construções particularmente notáveis pelo seu interesse histórico, arqueológico, artístico, científico, social ou técnico” (CONSELHO DA EUROPA 1985:Artigo 1º). Mais recentemente é a Carta de Cracóvia que defende que o monumento “é uma entidade identificada pelo seu valor e que constitui um suporte da memória. Nele, a memória reconhece aspectos relevantes relacionados com actos e pensamentos humanos, associados ao curso da história e ainda acessíveis.” (CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE CONSERVAÇÃO 2000:Anexo – Definições).

Falamos concretamente de um complexo vivo, cuja fundação remonta ao século XII, em constante mutação e evolução até aos dias de hoje. Neste, é possível verificar uma sucessão de culturas na estratigrafia que se distingue pela diversidade crono tipológica dos materiais. Estamos perante uma sobreposição de camadas que contam histórias: desde a ocupação islâmica passando para a ocupação cristã; ou desde a criação de um posto de vigia do território ao nascimento de um burgo medieval; e a sua transformação em couto de homiziados e posterior abandono.

O estudo desenvolvido compeliu-se pela premência de reunir e registar num único documento a informação dispersa por apontamentos, mapas, cadernos de campo e informação oral sobre o Castelo de Sesimbra, que se encontrava até ao momento inédita. São variadas as circunstâncias físicas, sociais e económicas inviabilizantes de trabalhos monográficos dos sítios arqueológicos, em comparação com estudos isolados que produzem um conhecimento fracionário e que permite apenas uma leitura equivalente a uma amostra da realidade, o que pode suscitar algumas questões sobre a fidedignidade das elações ou conclusões propostas. Os estudos residuais, fracionários ou de contextos isolados, de todo não menos imprescindíveis, não permitem uma visão global sobre o objeto de estudo quando o mesmo se incorpora num universo mais lato.

Malgrado a quantidade de intervenções arqueológicas realizadas no monumento, o conhecimento histórico-arqueológico do Castelo encontra-se em grande medida baseado na documentação histórica, permanecendo a vertente arqueológica, apesar de rica, ignorada durante décadas. Assim a dissertação objetiva a criação de um texto científico que permita a reinterpretação dos escritos já existentes e elaboração de novas teorias e informações a partir da cultura material.

Embora se verifique perda de informação sobre os contextos dos quais a maioria das peças arqueológicas presente neste estudo é proveniente, dentro da realidade física que é o castelo e a sua cerca muralhada, é possível aferir informações relevantes quando estudadas no seu todo.

De acordo com Gordon Childe, os testemunhos arqueológicos para além de uma herança material são os documentos da arqueologia. O objeto de estudo da Arqueologia, a cultura material, resulta de alterações da realidade material consequentes da ação humana estando-lhe inerentes conjunturas sociais, políticas e económicas de um espaço e tempo. (CHILDE 1977:9) A importância do contexto para o artefacto arqueológico é relevante para a sua interpretação, mesmo quando este se insere num contexto mais lato, isto porque “todos os testemunhos arqueológicos constituem expressões, pensamentos e finalidades humanas (…)” (CHILDE 1977:11).

A realização de campanhas arqueológicas intensivas recorrendo a métodos de escavação ultrapassados é uma realidade comum dos sítios arqueológicos na Península Ibérica e no mundo, especialmente em relação às escavações em sítios arqueológicos de períodos históricos. Estes métodos de escavação impossibilitam o registo adequado das realidades arqueológicas, inviabilizando a associação contextual aos artefactos recolhidos, bem como leituras satisfatórias das realidades intervencionadas.

Ainda assim as técnicas e métodos da arqueologia permitem ao investigador distinguir e formar vários conjuntos crono-tipológicos da cultura material resultante dessas intervenções. A formação de grupos crono-tipológicos torna-se possível pela análise das variadas representações e condutas materiais expressivas que podem variar entre comunidades. As realidades materiais internas das sociedades perfilham modas que se modificam tanto por evolução tecnológica como influência exterior de contacto. Assim o arqueólogo deve “ignorar as pequenas particularidades individuais atribuindo tipos-padrão, criando classes (…) Só assim é possível reduzir a espantosa variedade da conduta humana a proporções ajustáveis ao tratamento científico”. (CHILDE 1977:14-15)

Desta forma, independentemente de qualquer perda de informação, os materiais em estudo são dotados de valor intrínseco de natureza física e química permitindo leituras e inferências sobre “a organização económica, social e simbólica da existência social e histórica do objeto”. (MENESES 1998:91)

O presente trabalho tem o propósito de apresentar o monumento evidenciando todos os elementos constituintes da fortificação e burgo medieval. Procura-se assim criar uma narrativa capaz de expor as evidências materiais móveis e imóveis, veiculando-as a leituras interpretativas críticas sobre a sua função, cronologia, fundação, alterações e referências históricas entre outros elementos resultantes da presente investigação.

METODOLOGIA

Os processos de levantamento e registo são os elementos basilares da Arqueologia, esta procura documentar as alterações da realidade material consequentes da ação humana. A dissertação procurou assim, num documento monográfico, registar os elementos arquitetónicos e realidades materiais sob a forma de narrativa, numa visita ao Castelo ao longo dos séculos. A abordagem escolhida permite consciencializar o leitor para o património imóvel e móvel do monumento, bem como para a sua evolução.

Desta forma a partir da contextualização individual das intervenções realizadas no Castelo, definindo e categorizando a sua datação, arqueólogos responsáveis e área do intervencionada, realizar uma súmula dos resultados e fontes utilizadas. Toda a informação foi organizada numa tabela resultando numa espécie de diário anual desde 1910 a 2020, onde o leitor poderá inteirar-se da história recente do monumento.

As realidades materiais do Castelo foram o objeto de eleição para a produção da narrativa evolutiva da fortificação e burgo medieval. Contudo à maioria dos artefactos arqueológicos não existe associada qualquer tipo de informação sobre estratigrafia sendo por vezes a única informação disponível a escavação de proveniência. Pela inexatidão da proveniência dos materiais dentro do recinto amuralhado os mesmos apenas podem ser alvo de estudo quando analisados em conjunto, permitindo a criação de grupos crono-tipológicos evolutivos. A atribuição de uma contextualização aos elementos arquitetónicos a partir da documentação histórica foi o veículo para a interpretação da cultura material. A dualidade do conhecimento histórico-arqueológico veio enriquecer em grande medida o trabalho, pelo que se desenvolveu a realização de um trabalho multidisciplinar.

Algumas das realidades abordadas nunca haviam sido alvo de registo pelo que se procedeu ao desenho em planta à escala com recurso a papel milimétrico e medições das estruturas. O desenho foi posteriormente vetorizado recorrendo ao software AdobeIlustrator permitindo uma imagem sistematizada das realidades abordadas. Por outro lado, desenvolveram-se propostas interpretativas sobre os edifícios. Para facilitar a leitura do texto idealizaram-se plantas do edificado a partir da documentação em épocas mais antigas, nos quais ocorreram alterações recentes que descaracterizaram o seu traçado original.

Com o objetivo de apresentar uma amostra fidedigna da realidade material do Castelo de Sesimbra o presente documento apresenta uma forte componente gráfica. No conjunto do aparelho gráfico procedeu-se à realização de desenhos, plantas e fotografias, de igual forma procedeu-se à recolha de fotografias e plantas e documentos nos arquivos referidos no capítulo anterior. No final de cada capítulo, sempre que aplicável e em complemento à análise de cada estrutura será apresentada uma proposta de planta vetorizada que permitirá um melhor enquadramento dos objetos sob análise.

Procedeu-se à seleção de uma amostra da cultura material móvel do monumento nas Instalações da Reserva Arqueológica do concelho de Sesimbra e realizou-se um inventário, com recurso à ferramenta Microsoft Office Excel. Na tabela apresentada, os materiais foram identificados de acordo com: a escavação da qual provém o artefacto; a prancha onde se pode observar o seu desenho; o número da peça atribuído neste estudo; a forma/tipologia do artefacto; o material em que é produzido; uma proposta de cronologia; e por fim um paralelo material para a peça apresentada.

O registo gráfico das peças realizou-se com recurso a pente de perfil e craveira tendo os dados sido registados em papel milimétrico à escala 1:1. Após a definição do perfil de cada peça e recorrendo à utilização do software AdobeIlustrator foram recriadas as peças na sua totalidade e tintado o perfil das mesmas. À posteriori e caso se justificasse realizou-se o registo fotográfico e utilizada a aplicação AdobePhotoshop de modo a apresentar alguma particularidade das superfícies das peças. A utilização da metodologia de desenho pontilhado para o registo das peças mostra-se essencial especialmente para a leitura dos metais.

Com o objetivo da criação de uma proposta da evolução crono-tipológica, os desenhos dos artefactos foram agrupados por tipologias e cronologias tentando apresentar uma amostra fidedigna da realidade material por época.

Os textos dos documentos medievais escritos em latim contaram com a tradução realizada pelo Dr. José d’ Encarnação para o efeito deste trabalho.

Os textos em português arcaico foram consultados a partir dos documentos originais presentes no Arquivo Nacional Torre do Tombo e Arquivo Municipal de Sesimbra contando com o auxílio dos historiadores João Ventura e Cristina Conceição na interpretação e esclarecimento de dúvidas sobre os mesmos.

A realização de todo o trabalho atrás referido permitiu a elaboração de um mapa geral do conjunto monumental com recurso a AdobeIlustrator. Neste são evidenciadas as estruturas e muros que foram descobertos em escavações arqueológicas, que se encontravam à superfície e que constam em mapas, plantas ou fotografias antigas que evidenciassem tais realidades. A criação de tal cartografia permitirá uma visão aproximada das realidades materiais da vila medieval constituindo uma ferramenta útil para futuras intervenções no interior do perímetro murado, por forma a garantir a valorização e proteção de estruturas e contextos já identificados em futuras intervenções. Na prossecução destes objetivos foram analisadas as evidências materiais in loco em dezenas de visitas de campo ao Castelo de Sesimbra.

No final do documento pode-se verificar uma amostra crono-estilística e evolutiva em estampas da cultura material móvel reflexo das populações que habitaram este espaço, bem como um mapa ilustrativo de todas as realidades imóveis do Castelo.

Em anexo na dissertação encontra-se o já referido diário de intervenções no monumento juntamente com o inventário das peças arqueológicas. O aparato gráfico que se encontra igualmente em anexo retrata um conjunto de fotografias das realidades abordadas no trabalho.

RESULTADOS FINAIS

A abordagem monográfica e multidisciplinar sobre as realidades materiais do Castelo de Sesimbra permitiu adquirir uma visão de conjunto sobre o monumento. Ao longo dos séculos, o processo evolutivo social, económico, político e religioso da fortificação e burgo medieval deixou-nos evidências materiais que neste trabalho procuramos reconstituir e apresentar.

Para além de sublinhar os aspetos mais relevantes de cada um dos períodos ou descrever de forma completa as estruturas ou conjuntos de estruturas, sempre seguindo a premissa que as evidências materiais deverão sustentar (ou não) o que a história nos conta, o presente trabalho procurou adicionalmente criar uma base sólida de partida para futuros estudos sobre o Castelo de Sesimbra.

Os documentos apensos pretendem sistematizar muita da informação recolhida durante a preparação deste trabalho, quer por via do levantamento sobre a história recente do Castelo, quer pelo longo inventário que apresenta uma amostra de 678 artefactos, agrupados em 87 estampas, que pretendem servir como base para enquadramento de materiais exumados em futuras escavações arqueológicas.

O levantamento, com início em 1910 até 2019/2020, compilando em mais de 50 páginas os mais diversos tipos de intervenção: intervenções arqueológicas, obras, obras de restauro, passando por correspondência, pareceres administrativos ou reconhecimentos. A longa lista pretende de forma suscita descrever cronologicamente os eventos que de alguma vieram a influenciar ou afetar as realidades materiais do Castelo.

A planta de todas as estruturas identificadas no interior do Castelo de Sesimbra permitirá uma valorização do património imóvel pela sua salvaguarda em futuras intervenções arqueológicas, bem como uma maior e melhor perceção sobre a organização interna do burgo medieval.

O trabalho que aqui se apresentou em revista procurou abordar estes fenómenos e eventos humanos cujos reflexos podem ser corroborados pela cultura material. Segundo a Carta sobre a Proteção e a Gestão do Património Arqueológico (ICOMOS 1990:3), os bens arqueológicos consistem no conjunto dos vestígios da existência homem, bem como em locais relacionados com várias tipologias de manifestações de atividades humanas. Estes testemunhos materiais, uma herança cultural dos nossos antepassados deve ser alvo de reflexão para um melhor entendimento das identidades e memória coletivas. A potencialidade da utilização do objeto como meio de criação de narrativas que contribuam para a reflexão da condição humana é imensa, tendo sido essa a principal linha orientadora do trabalho.


Láms. 1-6.
Exemplo das estampas de evoluções crono-estilísticas dos alguidares


Figs. 1-3.
Registo do Edificado e Propostas de Interpretativas


Figs. 4-6.
Proposta de Evolução

Fig. 7. Planta Final

BIBLIOGRAFIA

CHILDE, V. (1977): Introdução à Arqueologia. Publicações Europa América: 8-20. 2ª Edição.

Conselho da Europa (1985): Convenção de Granada - Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa.

ICOMOS (1964): Carta de Veneza sobre a conservação e o restauro de monumentos e sítios.

ICOMOS (1990): Carta sobre a Proteção e a Gestão do Património Arqueológico.

MENESES, U. (1998): Memória e Cultura Material: Documentos Pessoais no Espaço Público. Revista de Estudos Históricos, Vol. 11 nº 21: 89-103. Rio de Janeiro.

UNESCO (1976): Recomendação de Nairobi - Recomendação sobre a salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea.

*rui.gil_2@hotmail.com– Centro de Investigação Cultural de Sesimbra